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Perdidos todos numa noite suja

“Uma linguagem sem malicia é sinal de estupidez.” Bertolt Brecht

Idiota aquele que confia... Ouço tanto essa frase que muitas vezes acabo desconfiando até de mim... Pois afirmo que sou tão idiota por confiar nas pessoas e tão estúpida por prescindir da malícia na minha linguagem... Sofro muito com isso porque, vira e mexe, as máscaras caem e eu sou obrigada a ver a verdadeira cara do outro... Não quero dizer com isso que a malícia e a desconfiança não sejam necessárias em determinados contextos... Mas penso que ao blindarmos efetivamente nosso corpo e voz estamos cada vez mais nos distanciando da vida e da possibilidade de qualquer contato humano entre corpos e vozes... Sem tato e diálogo para onde vamos, humanidade? Para a morte, pois sim! Morte física e morte em vida! Morte matada e morte morrida!! Morte, enfim...


No Brasil das décadas de 60/70, o dramaturgo nascido em Santos, Plínio Marcos, escreveu uma série de peças dando relevo a vidas de miseráveis sem esperança... Miseráveis sem fé... Marginais de uma sociedade cuja governança se valia das mortes em vida da grande maioria para se refestelar no poder... um poder usurpado, diga-se de passagem...


“Dois perdidos numa noite suja” é uma peça de 1966 escrita dois anos após a deflagração da ditadura militar no Brasil, portanto seu conteúdo se aproxima tanto da nossa época, agora em 2017, que as fronteiras do tempo até se tornam invisíveis... Plínio teve como inspiração o conto “O terror de Roma” do escritor italiano Alberto Moravia.


As personagens gravitam num cenário frio e imundo, um quarto de uma espelunca qualquer. Sem sonhos ou expectativas apenas cospem seus quereres... Um quer apenas uma flauta para tocar... E o outro um sapato para procurar um emprego... Ambos estáticos em uma vida estática, sem esperanças... A única possibilidade de “poder” entre eles é a violência seja física ou psicológica... Esse poder se alterna ao longo da peça... Assim vão sobrevivendo...


Plínio Marcos foi considerado um poeta “maldito”. Um cara que soube como ninguém reproduzir situações reais com personagens que vivem à margem da sociedade... O texto tem um requinte lírico tão forte que a poesia das suas palavras perturbam as nossas vidas também estáticas e miseráveis apesar de burguesas... Plínio também já trabalhou em circo como palhaço, logo podemos ler em suas personagens o lirismo dos “clowns”...


No último dia 23 de maio, dentro do projeto Cine_Drama, exibimos o filme de Braz Chediak e fizemos a leitura dramática desse necessário e atual texto de Plinio...


O filme, com Nelson Xavier e Emiliano Queiroz, fez um caminho realista, com belas imagens e interpretações e uma luz especial que me lembrou as pinturas de Caravaggio...


A nossa leitura dramática saiu da esfera realista... As personagens foram interpretadas por duas mulheres “clowns” (um parêntesis: foi um jogo de cena maravilhoso com a apaixonada atriz Christiane Veigga!) para que houvesse um distanciamento da “violência extrema”... para que esse distanciamento ridicularizasse a “violência extrema”, supostamente viril e masculina, e a transformasse em algo patético e grotesco... e também permitisse a metalinguagem... para que pudéssemos usar a poesia para falarmos de poesia... o teatro para falarmos do teatro... duas atrizes para falarmos de duas atrizes... Muitas vezes taxadas de “vagabundas” e “putas” por enfrentar no mundo real as dores da sobrevivência como artistas nesse Brasil atual... As dores da sobrevivência por não venderem seus valores... Valores considerados “idiotas” e “estúpidos”, os quais muitas vezes nos alijam do mainstream de uma classe artística vendida e que na maior parte do tempo é hipócrita e canalha, seja de que lado esteja... Vomitando em atos o velho ditado “farinha pouca meu pirão primeiro”. Ou corrompendo o velho ditado “farinha pouca eu como logo todo o pirão”.


Tonho e Paco são personagens-metáfora de uma gente brasileira que vive num precipício sem fim... que não consegue sair do fosso... que vende seus valores ou que se mata ou mata para não ter que vender... que adoece pela dor da impotência... conheço muitas pessoas assim... de qualquer classe social, raça ou credo... também existem os blindados que se movem para lá e para cá... sem tato ou diálogo... meio zumbis... enfim...


Todos são passíveis de matar [ou se matar] pela sobrevivência... pelo menos desejo é o que não falta... sobretudo agora nesse Brasil com esse governo de merda... perdidos estamos todos numa noite suja... no entanto... penso eu que enquanto vivos estivermos ainda há esperança... de um recomeço...


Essa história ainda não acabou...

“só acaba com a morte”!


Aviso aos navegantes:

Breve voltaremos com uma montagem de “Dois perdidos numa noite suja”! Uma peça necessária nesses tempos sombrios... Nos aguardem!



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