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SOBRE HENRIK IBSEN

O PATO SELVAGEM

por Cristina Leifer

​“Eis o terrível de tudo: não sei o que devo pensar ou acreditar, e jamais saberei.”
Hjalmar Ekdal, personagem da peça “O Pato Selvagem”

 

Incrível como algumas peças escritas no século XIX são surpreendentemente atemporais. Acabei de reler “O Pato Selvagem” do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1824-1906). A peça foi escrita em 1884 e se revela um grande drama cotidiano sobre a ambiguidade das palavras e dos comportamentos humanos. A verdade liberta ou chafurda mais ainda os frágeis seres humanos na lama das suas vidas?
“O Pato Selvagem” apresenta uma família falsamente coesa e estruturada, cercada por meias verdades, até que surge de volta à cidade um amigo ávido por levantar a poeira das mentiras e revelar as verdades escondidas, colocando em dúvida a noção de certo ou errado.
A universalidade da peça nos traz ao nosso tempo e nos faz refletir que hoje há uma intensa espetacularização de tudo, um excessivo teatro dos discursos, das imagens, e, sobretudo, da vida privada. Na esfera das redes sociais, por exemplo, vivemos hoje paradoxalmente com acesso a tudo e a nada, posto que na suposta exposição da “vida virtual” se potencializa o encantado mundo da linguagem e tudo se esfacela diante das “nuvens”. E nesse ringue obscuro, abocanha o poder o patético senhor das curtições, aquele que possui maior número de seguidores-vassalos, reproduzindo a lógica capitalista do “senhor e do escravo”.
Segundo o semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980), “o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social: não somente no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiares e privadas, e até mesmo nos impulsos liberadores que tentam contestá-lo: chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe.”

HENRIK IBSEN: O SHAKESPEARE BOURGEOIS

por Cristina Leifer


Continuarei falando de Henrik Ibsen. Aliás, posso falar de Ibsen ad infinitum. É um dramaturgo ícone das tragédias burguesas. Considerado por muitos o “Shakespeare Burguês”, foi um delator das hipocrisias, das mentiras sociais necessárias aos espíritos fracos da burguesia de então.
“Henrik Ibsen é o maior dramaturgo do século XIX”, disse o crítico Otto Maria Carpeaux. Viveu nesse século sob a influência do cientificismo e do positivismo. Influência esta que o fez se firmar como um dramaturgo investigador da alma humana. E paradoxalmente também foi o século dos românticos, delineando um homem cuja personalidade forte e passional fortaleceu seus sonhos humanitários.
Ibsen também transitou pelo simbolismo e impressionismo, escrevendo uma das peças mais líricas que já tive a oportunidade de ler “Peer Gynt” (1867), toda escrita em versos. A peça foi musicada pelo compositor também norueguês Edvard Grieg (1843-1907).

O dramaturgo norueguês foi o responsável por trazer à tona temas polêmicos que perturbaram a vida conservadora e hipócrita do mundo social burguês de sua época. Ainda que temas como a emancipação feminina, na peça “Casa de Bonecas”, na qual uma mulher quebra a vida regrada da sua família e consegue sair de casa para se manter viva, por exemplo, e o problema da sífilis hereditária, na peça “O Pato Selvagem”, sejam datados, não conseguem extrair a força e a profundidade das relações humanas apresentadas por Ibsen.
Abro aqui um parêntesis para enriquecer o texto que segue. Quando estive em Berlim, assisti a uma montagem da peça “Casa de Bonecas” no teatro Schaubühne, com direção do alemão Thomas Ostermeier (1968), cujo título foi alterado para “Nora”, nome da personagem central Nora Helmer. O espetáculo era realista, mas absolutamente centrado na atuação do elenco. A cena se passava numa casa moderna. Era uma família de classe média alta que ia se esfacelando gradativamente por meio da tomada de consciência da protagonista. Os atores eram tão bons, tão profundos e complexos em suas interpretações que ao final, pela primeira vez em toda a minha vida, eu disse um “Bravo!” em meio aos calorosos aplausos da plateia. A atriz Anne Tismer (foto) no papel de Nora Helmer merece muitos aplausos. Ostermeier vai além ao mostrar uma mulher contemporânea que ao final do espetáculo com uma arma na mão atira resolutamente no próprio marido. Seria o extremismo do nosso mundo atual, sem equilíbrio, ou tudo ou nada?
Acho que morrerei privilegiando no teatro o trabalho do ator. Os alemães adoram reviver os clássicos. Pelo menos quando estive lá em 2006 assisti a Ibsen, Tchekhov, Genet, Brecht, etc. Isso é bom, mas será que já apontava, há seis anos, para uma crise dramatúrgica no mundo atual? E aqui no Brasil, podemos esperar textos dramáticos que sobrevivam aos séculos?
Acredito muito na força dos clássicos por continuarem vivos ao longo dos tempos. Por isso, qualquer peça de Ibsen merece leitura atenta. No entanto, considero salutar e importantíssimo o incentivo à dramaturgia contemporânea para o surgimento de novos autores. Confesso que adoro ler peças de teatro, apesar de muitos não gostarem. E quando leio e gosto, o meu imaginário voa solto, louco para encontrar um palco que dê vida “real” às peças.
Outra breve curiosidade é que quando estive em Munique conheci o famoso café intensamente frequentado por Ibsen, o Café Maximiliam, onde ele lia, segundo Carpeaux, “montanhas de jornais que significavam para ele, o solitário, uma janela para o mundo real lá fora”. Por enquanto é isso. Como o espaço é curto, na próxima semana continuarei falando de Ibsen.

QUEM É MESMO O  "INIMIGO DO POVO"?

por Cristina Leifer


Como disse no último texto, continuarei ponderando sobre os reflexos em nosso tempo da obra e da vida do dramaturgo norueguês do século XIX, Henrik Ibsen. Prova disso são as inúmeras encenações contemporâneas de suas peças.
Mais uma vez apresento aqui a produção de “O inimigo do povo” de Ibsen (foto), realizada pela companhia teatral alemã Schaubühne, capitaneada pelo diretor alemão Thomas Ostermeier. A peça estreou em 18 de julho desse ano, em Avignon, França. E fez nova estreia em 08 de setembro em Berlim, Alemanha. Essa peça, infelizmente, eu ainda não assisti. Para assisti-la tenho que capitalizar para comprar as passagens, pagar hospedagem e alimentação e otras cositas más. Ou, de forma estupidamente otimista, esperar que a companhia venha para Salvador.
Voltemos a Ibsen!
Antes de discorrer sobre a peça supracitada, falarei do universal dramaturgo norueguês. Nascido em 1828, em uma pequena cidade no Sul da Noruega, Ibsen era filho de comerciante abastado que faliu quando o menino completava sete anos de idade. Ibsen conheceu de perto a falência de uma família burguesa em uma província. Uma realidade que se fez esconder hipocritamente ao mundo provinciano da Noruega.
Atualmente, a palavra “província” nos remete a um lugar atrasado intelectualmente, cuja população medíocre se interessa menos pelas coisas do espírito, digo Arte (para não dizer cultura, cuja definição atualmente se complicou aqui pelas bandas tropicais), que pelas coisas materiais e pelo consumismo desenfreado. Uma população que prefere arrotar “status quo” a lutar pelas reais necessidades da sua cidade.
Ibsen viveu boa parte da sua vida nesse lugar inóspito à sua personalidade. Primeiro: seus pais o mandaram para estudar em uma cidadezinha nas montanhas como aprendiz de farmacêutico. Óbvio que não deu certo. Segundo: tentou entrar na Universidade, mas esta só oferecia “carreiras, menos gloriosas e mais seguras, de pastor e médico.” A vida acadêmica não incentivou seus sonhos como escritor, levando-o a renunciar os estudos em nome de uma dedicação exclusiva à literatura.
Terceiro: após algumas peças escritas, mas ainda sem as chamadas “peças realistas modernas”, Ibsen escreveu uma “peça histórica” e, em sua cidade, viu-se sobrepujado por seu oponente norueguês Bjoernson. Segundo Otto Maria Carpeaux, “Fizeram as maiores restrições à peça, e aplaudiram freneticamente o brio mais fácil e o patriotismo esplêndido de Bjoernson. Ibsen ficou profundamente impressionado. De repente, revelou-se-lhe a falsidade íntima do romantismo nacionalista. O movimento do qual fizera parte, parecia-lhe agora encarnar todos os lados antipáticos do caráter nacional – vaidade sem mérito, entusiasmo sem consequências, falso brilho poético, quase mentiroso. (...) Desde então a atividade dramática de Ibsen quase parou. (...) Uma segunda viagem à Alemanha fortaleceu em Ibsen a convicção de que a Noruega era irremediavelmente provinciana, atrasada, ridícula. (...) A realidade norueguesa só se prestava a assunto de comédia.”
Resultado: em 1864, Ibsen “deixou a Noruega aos ‘românticos’ e comerciantes, e foi-se para a Itália. Escolheu Roma para residência.” Mais tarde, em 1875, mudou-se para Munique, onde viveu por mais de quinze anos, voltando em 1891 à Noruega onde esteve até a sua morte, em 1906.
Sem muita provocação, qualquer semelhança com a “provinciana” Salvador terá sido mera coincidência. E vou mais além, muitos artistas de excelência da terra do acarajé se foram, estão indo e, se nada mudar, com certeza irão. A alienação soteropolitana está cada vez mais intensa. Vivemos hoje uma crise de conteúdo e uma forte tendência à ignorância por opção. Mesmo aqueles que têm acesso à leitura, ao ato de pensar, escolhem outro caminho: o caminho raso do superficialismo e da mentira mascarada de verdade.
Pergunto eu: quem é mesmo o inimigo do povo?
Ibsen escreveu a peça “Um inimigo do povo” em 1882, mas sua temática se revela extremamente atual. Na peça, um médico chega a uma “cidadezinha” para tentar construir uma estância termal e descobre que a água do lugar está contaminada devido a dejetos industriais, mas ao invés de obter a anuência das autoridades e comunidade, estes se voltam contra ele e o designam “um inimigo do povo”.
Àquele que revela a verdade de uma cidade infecta, o ostracismo.
Quem é realmente o inimigo do povo?

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